Burgess Shale e a Reforma Darwinista

No Sexto período da faculdade, tivemos que ler um livro e resumi-lo, além de construir um comentário pessoal no final do relatório. O nome é Vida Maravilhosa, de Stephen Jay Gould, que trata da evolução da vida no planeta Terra e de como alguns invertebrados inocentes do Cambriano mudaram nossa maneira de enxergá-la.

Eis o livro da vez.

Como o assunto é interessantíssimo, resolvi enxugar o máximo possível meus escritos originais e postá-los aqui no blog, para proveito de quem quer que se interesse. Boa leitura!

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A Iconografia de uma Expectativa


Burgess Shale, encravado nas geladas montanhas rochosas canadenses.

Encontrados nas Montanhas Rochosas canadenses, os fósseis de Burgess Shale constituem talvez os mais importantes do mundo, já que permitiram estudar um dos eventos mais obscuros envolvendo a vida na Terra: a explosão cambriana.

Tais preciosidades científicas foram descobertas por um dos maiores paleontólogos americanos, Charles Walcott, que os interpretou de forma equivocada, posicionando-os em um período de tempo muito mais recente, até que décadas depois Harry Whittington publicou uma série de trabalhos que mudaram nosso modo de ver a evolução.

Os animais escavados eram tão estranhos que se fez necessário criar filos diferentes para eles. Além de representantes de todos os quatro grandes grupos de artrópodes (trilobitos, crustáceos, quelicerados e unirremes) existem de 20 a 30 espécies que não podem ser colocadas dentro de nenhum filo existente nos dias de hoje.

Graças a eles sabemos hoje que a vida evolui através de extinções massivas seguidas de diferenciação dos sobreviventes, e não por uma caminhada segura e cada vez mais alta, em direção a um progresso ininterrupto.

Ao mesmo tempo, sabemos que o chamado “darwinismo social” se estendeu como uma praga entre os céticos radicais, causando desde pequenos erros racistas em publicações científicas até holocaustos inteiros.

“A marcha do progresso é a representação canônica da evolução – aquela imagem imediatamente captada e visceralmente compreendida por todos.” Até mesmo a palavra evolução se tornou sinônimo de progresso.

Esse tipo de figura está de tal modo enraizado no nosso modo de pensar que é difícil acreditar que não corresponda a verdade.

Pior ainda quando a imagem se presta a piadas criativas sobre o futuro do homem em geral...

...Ou de certas personalidades mais específicas. A própria palavra "evolução" virou sinônimo de "progresso."

A figura de uma árvore que se expande a partir do tronco para visualizar a evolução e a diversificação dos seres vivos também não é muito apropriada quando pensamos em homoplasias ou na transferência lateral de genes por vírus nos vegetais. Talvez fosse mais apropriado pensarmos numa árvore em que os galhos voltam a se fundir vez por outra.

Do mesmo modo, a metáfora de uma árvore de diversidade crescente, os mamíferos ocupando o topo, serviram para reforçar a mesma idéia por mais de um século.

Esse novo tipo de visão esbarra até mesmo no nosso conceito de lugar na evolução. Deixamos de ocupar o topo da árvore para figurarmos num canto miserável qualquer da periferia.

A árvore sugeria uma evolução previsível, que ia do simples ao mais complexo, a humanidade no auge. Hoje sabemos que a maioria das criaturas “simples” não são ancestrais do homem, mas ramos laterais independentes.

Os fósseis de Burgess, por sua idade extremamente avançada no registro geológico, deveriam apresentar simplicidade anatômica sendo, provavelmente, formas primitivas convivendo com animais modernos ou mesmo ancestrais de seres que conhecemos hoje. Mas isso não se deu.

Whittington e seus colegas descobriram que essas criaturas eram muito mais ricas em suas variações anatômicas do que é encontrado em nossos dias na natureza. A amplitude dessa variação foi diminuindo logo após o surto inicial, através de sucessivas extinções, com uma posterior diversificação contida nos planos básicos sobreviventes.

Muito embora o número de espécies hoje seja maior do que em qualquer época conhecida, essa variedade é baseada numa pequena amostra de tudo o que já viveu sobre a Terra.

Toda a biodiversidade vivente hoje se irradiou de uma parcela ínfima de ancestrais que tiveram a sorte (?) de viver o suficiente para deixar descendentes.

Mas, a cada grande extinção, estariam os sobreviventes melhor equipados por terem sobrevivido ao desafio? Ou foi o simples acaso que os escolheu?

“Muitos grupos podem triunfar ou desaparecer por razões que nada tem a ver com o que serve de base para o êxito darwiniano em tempos normais.”

A evolução da vida seguiu um caminho único influenciado por bilhões de pequenos acasos que jamais voltariam a se repetir caso voltássemos no tempo e mudássemos um pequeno detalhe no inicio de tudo. Nem o homem ou qualquer outra espécie está viva hoje pode ser o ápice da evolução, somos apenas os escolhidos temporários de um meio ambiente que de quando em quando devasta grandes grupos biológicos.

Mas,“a rejeição da escada e do cone não nos joga nos braços do seu presumível oposto – o puro acaso.(…) Embora possamos compreender que o velho determinismo não pode mais ser aceito, achamos que nossa única alternativa está no desespero da pura casualidade. (p. 51)”

É o que na história recebe o nome de contingência, o poder do acaso  mesmo nos mínimos detalhes e que influenciarão os eventos futuros num nível cada vez maior por toda a eternidade.

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Algumas Informações Sobre Burgess Shale


O aparecimento repentino de vida complexa no registro fóssil continua um mistério para a ciência moderna.

No inicio da Era Paleozóica, por exemplo, temos o súbito aparecimento de animais com partes duras. Os fósseis de Burgess Shale, por sua vez, datam de um tempo um pouco depois da grande explosão, cerca de 50 milhões de anos após o evento.

Enigmaticamente, o registro fóssil do Pré-Cambriano não contém registro de animais com características morfológicas parecidas com os que vêm logo a seguir, por isso o apropriado nome “explosão cambriana”, pois é como se todos os organismos mais complexos houvessem surgidos de repente sobre a Terra.

Por muito tempo, a ausência de fósseis no período anterior fez com que alguns criacionistas argumentassem que essa era a prova de que os organismos foram criados repentinamente por Deus. Seja como for, o assunto incomodava Darwin que, “sempre honesto ao expor as dificuldades encontradas por suas teorias”, dedicou uma parte de A Origem das Espécies ao estudo desse mistério. Ele usou a irregularidade do registro fóssil como argumento para a falta de evidência de vida anterior ao Cambriano.

Existem, é claro, aqueles que vêem nisso o dedo de Deus.

De fato, só nas últimas décadas foram encontrados fósseis do Pré-Cambriano, mas são tão diferentes que não se pode traçar uma linha evolutiva contínua até seus descendentes, e o problema da diversificação explosiva permanece o mesmo, agora mais inquietante.

Pelo que sabemos, nos primeiro 2,4 bilhões de anos a vida permaneceu unicelular e procarionte. E mesmo quando ela surge, o tempo decorrido entre elas e os primeiros seres unicelulares é maior que o da explosão até nossos dias. A imperfeição do registro fóssil é algo que incomoda os evolucionistas, principalmente pela falta de partes moles preservadas. Isso é especialmente ruim porque a maioria dos animais não tem partes duras. Como conseqüência, grande parte do que sabemos sobre o passado vem de “locais de veio”, ou seja, grandes concentrações fósseis provocadas por condições especiais como sedimentação abrupta do ecossistema, ausência de oxigênio no local da deposição ou mesmo os tipos de bactérias responsáveis pela decomposição.

Burgess Shale é um desses veios, mas apresentando uma gama de variações anatômicas muito além da que existe hoje, uma característica exclusiva da primeira explosão de vida multicelular. Nos 500 milhões de anos subseqüentes, nenhum outro filo surgiria na Terra. Os cientistas se perguntam como tal variedade pode ter sido possível num período tão curto.

A descoberta desse rico veio fossilífero deve-se ao empenho e à paixão de um grande geólogo, Charles D. Walcott.

O espírito aventureiro levou Walcott à uma das maiores descobertas da história da ciência, porém os valores sociais da época o deixaram cego quanto à magnitude do que descobriu.

Nos últimos dias de agosto de 1909 ele encontrou as primeiras rochas e prosseguiu até o dia 7 de setembro, quando a neve o impediu de prosseguir, ainda que ele tenha muito provavelmente conseguido encontrar os leitos principais já nessa primeira temporada.

Na década de 1930, Percy Raymond, um professor de Harvard reabriu a pedreira, coletando mais espécimes. Foram basicamente esses espécimes que serviram de estudo sobre a fauna de Burgess Shale, pelo menos até a interpretação revolucionária conduzida  na década de 1960.

Nos verões de 1966 e 1967 vários cientistas usaram dinamite e helicópteros para extrair uma quantidade absurda de material, ainda que Whittington tenha espirituosamente observado que a maior revolução tenha sido a caneta com ponta de feltro, possibilitando marcar o fóssil logo após sua extração.

Em 1981 e 1982, Des Collins, sem permissão para explorar mais uma vez o sítio, escavou nas regiões circundantes e encontrou 12 novos veios, com espécies inéditas.

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A Reconstrução de Burgess Shale

Burgess Shale e um de seus fósseis: Patrimônio da Ciência.

Apesar da importância das escavações de Whittington em 66 e 67, foram os velhos fósseis de Walcott que melhor serviram para formar a idéia revolucionária que Burgess proporcionou.

Podemos dizer resumidamente que quatro pessoas estiveram envolvidas diretamente na reinterpretação dos organismos:

Harry Whittington – iniciador do projeto e catedrático de geologia de Cambridge.

Simon Conway Morris, David Bruton e Derek Briggs – estudantes de pós-graduação.

Burgess, como se fosse mesmo um presente divino forjado no Cambriano, tem ainda a qualidade de fornecer fósseis tridimensionais, mesmo que numa minoria. Esses exemplares foram vitais para Whittington revelar estruturas anatômicas dos animais.

A sedimentação da lama podia ocorrer de forma abrupta, encerrando o organismo inteiro de uma só vez. Embora a grande maioria dos fósseis seja realmente muito comprimida, uma parcela deles não é, e basta que se retire cuidadosamente (as vezes grão por grão de areia) os folhelhos que constituem a rocha, adentrando o organismo quase como se ele tivesse acabado de morrer.

Whittington iniciou seus estudos com o gênero mais abundante de Burgess Shale, Marella. Até então, desde os tempos de Walcott essa criatura havia sido classificada dentro da classe Trilobita. Mas um especialista amigo de Whittington percebeu diferenças significativas com os trilobitas e contestou a antiga classificação, ainda que achasse que ele pertencesse ao grupo dos artrópodes. Até Whittington aparecer todos os cientistas fizeram isso, mesmo aqueles que não concordavam totalmente com Walcott. Parte dessa inércia se deve a idéia tradicionalista de que os fósseis representavam estágios primitivos de grupos viventes mais complexos. Chegou-se a fazer uma união taxonômica com base na semelhança dos apêndices quando as diferenças abrigaram a retirar Marella na classe Trilobita.

Marella

Whittington, cauteloso e sistemático, afirmou que a aparência geral do corpo de Marella deixava de existir quando olhada mais de perto. Apenas as estruturas básicas eram similares. O número de seguimentos nas pernas, principalmente, serviam para enfatizar a dúvida.

Em 1971 Harry estava preso à idéia de que os organismos de Burgess tinham que ser primitivos, fossem membros não especializados de grupos grandes ou mesmo ancestrais com características de vários grupos e que podiam ser considerados os pais de todos eles.

Hesitante, ele classificou Marella como um grupo próximo dos trilobitas, mesmo sentindo que alguma coisa estava errada.

A monografia de Yohoia, publicada em 1974 avançou um passo na direção da grande transformação que viria a seguir. Até então, Marella havia lhe dado uma conclusão correta: aquele organismo não podia ser enquadrado em nenhum grupo conhecido de artrópodes. Porém, ainda faltavam as bases conceituais para uma mudança definitiva.

Yohoia.

A bizarrice mais explícita é o grande par de apêndices presos à cabeça, usados para agarrar a presa com quatro espinhos poderosos em cada um. Tal estrutura confundiu Whittington, pois são totalmente únicas entre os artrópodes. Cauteloso, mesmo assim ele não propôs nenhuma teoria formal, mas acrescentou um ponto de interrogação após classificá-lo como Trilobitoidea.

Coisas ainda mais estranhas viriam pela frente, diante das quais Marella e Yohoia pareceriam meras excentricidades. Embora esses dois organismos tivessem preparado Whittington para a peculiaridade da fauna de Burgess, ele definitivamente teve uma surpresa ao de deparar com Opabinia.

Desde Walcott, em 1912, não havia a menor dúvida quanto à natureza artrópode desse animal. Embora os fósseis fossem raros, Walcott descreveu o gênero antes de todos os artrópodes de Burgess. O corpo alongado e cheio de segmentos o fez crer que aquele animal tinha grandes chances de ser o ancestral dos anelídeos, o que faria dele o artrópode mais antigo do sítio.

Opabinia.

O pequeno animal, tímido e empoeirado nas gavetas, praticamente pedia para ser submetido às mais novas técnicas da paleontologia: dissecação através da rocha para observar estruturas internas, e Whittington o fez. Ele pretendia encontrar os frágeis e hipotéticos  apêndices da cabeça de Opabinia, esmagados e escondidos sob a carapaça, mas não encontrou nada. Opabinia não era um artrópode, na verdade não era nada que alguém pudesse especificar.

Em sua monografia, Whittington enumerou 6 características que excluíam Opabinia do grupo de artrópodes:

1 – Cinco olhos sobre a cabeça.

2 – O focinho frontal não é uma probóscide nem se originou de uma fusão de antenas.

3 – O intestino faz uma estranha curva em forma de U na cabeça, produzindo uma boca voltada para trás.

4 – A porção principal do tórax constitui-se de 15 segmentos.

5- A disposição das brânquias sobre os lóbulos não seguem nenhum padrão convencional.

6 – os três últimos seguimentos formam uma estranha cauda voltada para cima e para fora.

Whittington chegou a essas conclusões depois de muito esforço envolvendo várias técnicas, desde a observação incansável de espécimes conservadas em várias posições até o novíssimo método de dissecação com broca de dentista, lâmina por lâmina.

Embora Yohoia e Marella tivessem causado certo frisson, eles continuavam artrópodes, ainda que isolados dentro do filo. Opabinia, porém, foi a descoberta definitiva, a passagem para outro nível de compreensão da vida.

Ele sabia que tudo isso bem podia ser apenas a ponta do iceberg. Depois de selecionar novos gêneros que ele mesmo estudaria, dividiu os outros artrópodes em três grupos, cara um conduzido por um colaborador.

Simon Morris, um jovem esquisito e anti-social parecia um dos alunos menos indicados para enfrentar os vermes, um grupo diversificado que havia sido classificado como tal unicamente por terem simetria bilateral e corpo alongado. Ele tinha diante de si cerca de 8 mil espécimes da coleção de Walcott guardados nas gavetas do Instituto Smithsoniano. Morris vasculhou os armários buscando sistematicamente os espécimes mais bizarros:

Nectocaris – A cabeça desse animal assemelha-se a de um artrópode, com um ou dois pares de apêndices curtos mas provavelmente não articulados. Na parte posterior, há uma carapaça oval achatada, bivalve.

Nectocaris numa bela aquarela.

As semelhanças com os artrópodes param por aí. O corpo alongado, constituídos por cerca de 40 segmentos não apresenta nenhum apêndice articulado, sugerindo mais um parentesco com os cordados que com os artrópodes.

Odontogriphus – Animal alongado, ovóide, bastante achatado e possivelmente de consistência gelatinosa. Atrás da região frontal o corpo é marcado por uma série de linhas transversais que Morris julgou serem anéis e não divisões reais do corpo. Ventralmente, uma boca circular é rodeada por algum tipo de estrutura alimentar.

Odontogriphus

Hallucigenia – Para muitos esse é o mais estranho personagem de Burgess. Sua simetria bilateral é a única característica que faz Hallucigenia algo parecido como o que os biólogos estão acostumados. Quando foi descoberto, nem se sabia que lado era ventral ou dorsal ou posterior e anterior.

Hallucigenia, com ares de extraterrestre.

Hallucigenia possui uma cabeça bulbosa numa extremidade mal preservada em todos os espécimes. Isso faz com que faz com que alguns estudiosos considerem o animal parte de um organismo ainda maior, que se desprendeu. De toda forma, nem se sabe se esta é mesmo a região cefálica.

Sete pares de espinhos não articulados ligam-se aos lados do tronco, ventralmente, enquanto por cima sete tentáculos com pontas bifurcadas se dispõem em fila. O modo como esse animal podia se movimentar intrigou e gerou discussões entre os estudiosos de Burgess. Conway Morris conjecturou que os espinhos serviam para firmar o animal num substrato lodoso, movendo-se pouco e devagar com a ajuda de músculos especiais.

Os tentáculos também trouxeram problemas e, junto com eles, hipóteses. Morris julgou que os tubos eram ocos e ligavam-se a um tubo digestório estendido através do corpo. Talvez nem existisse boca, os tentáculos capturavam os alimentos e os engoliam.

Os trabalhos continuaram com Derek Briggs, o outro acadêmico recrutado para ser responsável pelos artrópodes bivalves.

Branchiocaris, dono de uma carapaça bivalve que cobria não apenas a cabeça mas também dois terços do corpo. Este, por sua vez, apresenta 46 segmentos, afinalando na parte posterior e terminando num telso bifurcado.

Branchiocaris.

Como a cabeça de todos os crustáceos é o resultado da fusão de cinco seguimentos originais, isso origina cinco pares de apêndices bem dispostos, e era isso o que Briggs esperava encontrar. Porém, não foi o que aconteceu. Ele encontrou apenas dois pares na região de cima e nada mais. Branchiocaris não era um crustáceo. O grupo que mais prometia comportar-se de acordo como script também revelou disparidades insuspeitas.

Harry havia aceitado a nova forma de ver a evolução, e os estudos que vieram a seguir só reforçaram isso. Sua próxima monografia já se iniciou com essa nova visão.

Aysheaia, descrito pela primeira vez por Walcott como um verme anelídeo logo mostrou os costumeiros sinais de divergência com esse grupo. Primeiramente o gênero foi aproximado dos onicóforos (um grupo de organismos que reúnem características de anelídeos e artrópodes.). Assim, se Aysheaia fosse um onicóforo do Cambriano seria uma criatura “extremamente importante do ponto de vista evolutivo”, uma vez que poderia fornecer informações valiosíssimas de como artrópodes e anelídeos divergiram de um ancestral comum.

Aysheaia.

O animal possuía um corpo cilíndrico, organizado em anéis e com dez pares de membros. Só essas características serviriam para encaixar Aysheaia dos onicóforos mas Whittington logo encontrou diferenças significativas como ausência de mandíbulas e o término abrupto do corpo após o último par de membros, e por isso considerou o gênero dentro de um grupo à parte.

Gould, por sua vez, sem lançar suspeitas sobre os méritos das pesquisas de Whittington, acha que ele se precipitou em separar Aysheaia dos onicóforos, pois os caracteres diagnósticos discrepantes são demasiadamente superficiais diante das semelhanças. As mandíbulas, por exemplo, nos diz ele, podem simplesmente terem evoluído numa época posterior. No entanto, acrescenta Gould, isso demonstra que Whittington havia aceitado completamente a nova forma de enxergar a evolução.

Enquanto isso, Briggs continuava seus estudos com os artrópodes bivalves.

Odaria, o maior dos artrópodes, era representado por 29 espécimes.

Na frente da cabeça desse animal havia um par de olhos, os maiores de todo o sítio. Contudo, só havia outra estrutura apoiada na região cefálica, um par de apêndices curtos logo atrás da boca. A ausência de outras estruturas já bastariam para deixar Odaria em um grupo separado dentro dos artrópodes, mas a má preservação da cabeça em todos os fósseis impediu resultados conclusivos.

Odaria, o quarto à direita.

O corpo, quase todo coberto por uma carapaça, possuía cerca de 45 segmentos dotados com membros birremes. Entretanto a carapaça não era achatada mas tubular e os membros não tinham comprimento para se protraírem. A cauda, definitivamente esquisita e única, dividia-se em três pontas como numa hélice. Briggs considerou que a locomoção do animal era estranha: ele nadava de costas, utilizando a cauda como hélice e a carapaça como câmara de filtragem, com os apêndices servindo para separar o alimento da água. Nas palavras de Briggs, “uma funcionalidade única entre os artrópodes”, e pronto, lá se criava mais um grupo.

Em 1981 David Bruton, outro mestrando de Whittington, publicou a monografia sobre Sidneya. Walcott havia considerado o gênero como o maior de Burgess, hipotetizando ainda que um apêndice espinhoso encontrado separadamente fosse ligado à cabeça da criatura.

Sidneyia.

Colocada originalmente dentre os merostomados (límulus e euripiterídeos fósseis), Bruton mostrou o quando isso era impróprio pois os caracteres apresentados para a classificação eram plesiomórficos.

“Os tempos de Burgess foram uma época de experimentação, uma era de tal flexibilidade evolutiva, de tamanha potencialidade na incorporação e rearranjo aleatório de características encontradas nos artrópodes que quase qualquer combinação potencial poderia ser tentada (e aniquilada).”

O paleontólogo Des Collins, impedido de escavar em Burgess, procurou consolo em sítios vizinhos, e acabou encontrando. Alem de espécies idênticas ao do parque, houve descobertas inéditas.

Sanctacaris tem uma carapaça na cabeça bulbosa, que se estende lateralmente e forma uma projeção de cada lado da cabeça. O corpo é segmentado e o telso largo e achatado. O que mais surpreende, no entanto, são os poderosos apêndices na boca usados para agarrar as presas, próprios dos quelicerados. Mas as divisões do corpo, a ausência de quelíceras verdadeiras e a posição do ânus o afastavam filogeneticamente, fazendo de Sanctacaris um grupo-irmão.

O portentoso Sanctacaris, animal extraordinário.

E finalmente, depois de muita confusão, temos o grande Anomalocaris, descoberto em sítios antes mesmo de Burgess Shale virar notícia. A monografia final foi publicada em 1985 por Whittington e Briggs.

E o maior de todos os carnívoros dos tempos de Burgess: O belíssimo Anomalocaris.

Uma cabeça oval grande com olhos apoiados em pedúnculos curtos e uma boca ventral circular. O corpo alongado possuía abas laterais que ele utilizava em seu modo de vida pelágico, devendo em muitos pontos lembrar o movimento de uma raia.

A segmentação do corpo e dos apêndices orais é a única coisa que lembra um artrópode. A boca circular, ao que parece sempre semi-aberta, é diferente de tudo o que existe no filo Arthropoda, e mesmo o par de apêndices, apesar de articulados, parecem ter outra origem.

Apesar dos “experimentos” de Burgess, encontramos lá também vários filos modernos. Gould insiste nesse ponto. Ele achava que, além de representantes dos quatro principais grupos de artrópodes, há indícios de pelo menos vinte novos designes únicos dentro do filo e pelo menos oito filos novos. Paralelamente, as estatísticas indicam que pelo menos metade das criaturas de Burgess ainda esperam por descrição nos armários do museu onde estão guardadas.

Em 1986 Morris publicou um vasto trabalho sobre a ecologia de Burgess.

A ecologia de Burgess se mostrou muito mais complexa do que os cientistas acreditavam ser possível.

Pela quantidade excessiva de algas ele concluiu que o ambiente era um mar raso e quente. A maioria dos animais ocupava nichos bem definidos, numa teia bem mais intrincada do que até então se julgava possível na época. Morris concluiu que, ao contrário do que se supunha, a vida marinha havia alcançado um grau de complexidade tão elevado quanto à de hoje. Isso serviu inclusive como prova de que a ecologia de Burgess havia alcançado estabilidade, ou seja, apesar de muito diferente, deu certo por um tempo relativamente longo.

Enquanto os trabalhos se irradiavam (infelizmente não com a velocidade ideal, visto que as monografias não tem grande popularidade nem mídia) mais fósseis foram descobertos em várias partes do mundo. Seres parecidos foram descobertos em camadas mais antigas, do Cambriano Inferior. Isso causou estardalhaço porque permitiu concluir que o fenômeno da disparidade ocorreu mesmo durante a explosão propriamente dita. Os organismos de Burgess já eram descendentes estabilizados de ancestrais que continuam misteriosos até os dias de hoje.

Gould chega a uma bifurcação principal, que constitui o início de uma conclusão. Como pôde haver tal disparidade num período tão curto de tempo? E porque essa mesma diversidade sofreu um grau tão massivo de destruição?

Para explicar a origem dessa fauna absurda, existem três teorias principais:

1 – O mundo vazio de vida no Pré-Cambriano permitiu uma gama muito variada de formas para os primeiros seres vivos do planeta. A medida em que os grupos e espécies se estabeleciam em seus nichos, havia menos espaço para o surgimento de outros. “A diversidade é auto-reguladora”, uma teoria em conformidade com o pensamento de Darwin.

Gould admite que as oportunidades naquela época realmente nunca mais se repetiram. Mais que isso, reconheceu que sempre após uma extinção em massa há um período de posterior variabilidade. No entanto, ele acha estranho que desde então não se tenha produzido um único filo novo.

2 – Uma outra teoria sustenta que o material genético perca sua potencialidade a medida em que o tempo transcorre e os seres vivos se reproduzem. É como se os primeiros organismos, mais próximos da fonte, da “energia vital” pudessem escolher uma maior variedade de genes, mas ficassem à mercê desses mesmos genes após as escolhas, não sendo permitido, para o bem ou para o mal, voltar atrás. Criações boas originavam organismos bem sucedidos, as que não tinham tanta plasticidade ao meio levavam a um beco sem saída evolutivo.

3 – Por fim, usando uma analogia já utilizada por outros autores, Gould nos apresenta sua teoria favorita, a de que “a diversificação inicial e posterior fechamento” é uma propriedade inerente aos sistemas biológicos. Se encararmos o mundo vivo com a metáfora de uma região montanhosa, fica mais fácil visualizar isso.

Imagine que cada pico representa um nicho ecológico favorável, pronto para receber quem vier primeiro. No início, quando não existe competição entre as espécies e o mundo está bem despovoado, é possível para um organismo dar saltos evolutivos considerados arriscados e mesmo assim aterrissar numa montanha vazia. No entanto, a medida em que o mundo se povoa, as chances de um salto em falso aumentam, pois não há tantos lugares disponíveis como antes. Saltar tão longe e errar significa extinção na certa, as excentricidades anatômicas só são possíveis num mundo onde pouca coisa já foi testada e aprovada.

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A Visão de Walcott e a Natureza da História


Gould inicia o capítulo 4 com uma biografia detalhada de Walcott, enfatizando pontos de sua personalidade que supostamente tenham sido responsáveis por sua adesão ao modelo de diversidade do cone de diversidade crescente e a idéia de que a evolução segue um caminho de progresso.

Sério, tradicionalista e totalmente pertencente ao seu tempo, Walcott era partidário dos bons costumes e possivelmente de todas as teorias racistas muito em voga na época.

Gould nos lembra que o conservadorismo e o puritanismo norte-americano criou um verdadeiro movimento anti-evolução, algo que pudemos observar mesmo agora, em tempos mais recentes.

A época de Walcott foi uma época de crise religiosa e ele, como homem tradicional, tentava buscar respostas que fizessem com que ciência e crença pudessem caminhar juntas. Ele via Deus através do “caráter ordenado, previsível e progressivo da história da vida.” A evolução, para ele, conduzia ao progresso, e como não ver um plano divino nisso?

A árvore da vida na forma de um cone crescente a partir da base se tornava cada vez mais popular e também subjetiva, já que os autores colocavam os animais em suas posições acima ou abaixo de acordo com seus próprios critérios racistas.

Gould afirma que Darwin percebeu o efeito do acaso nos detalhes, enquanto as leis evolutivas só traçariam um plano básico de estruturas. Darwin disse que “os detalhes estão situados na esfera da contingência, a qual não é direcionada pelas leis que estabelecem os canais ao longo dos quais se processa a evolução.”

O fato é que os homens continuavam modificando as pesquisas de modo a se encaixarem em seus padrões.  O principal impedimento ao avanço da ciência sempre foi a influência subjetiva que os estudiosos aplicam em seus estudos, na maior parte das vezes de forma inconsciente.

5

Mundos Possíveis: O Poder da “Simples História


Gould utiliza o capítulo 5 como fechamento para a nova idéia proporcionada por Burgess Shale de como a vida seguiu sua trilha através de bilhões de anos de evolução.  Quando Darwin escreveu A Origem das Espécies, nos diz ele, ao falar sobre “melhor adaptado” ele quis dizer “mais adequado a um ambiente sujeito a alterações.” E são essas mudanças repentinas a causa primordial das guinadas evolutivas percebidas nos registro geológico. Gould argumenta que Burgess Shale foi o insight que faltava a essa nova visão da vida.

Por fim, ele nos brinda com exemplos, trilhando caminhos hipotéticos que a vida poderia ter seguido se as espécies sobreviventes no passado tivessem perecido.


COMENTÁRIO PESSOAL:


Antes de começarmos, devo esclarecer o que entendo por comentário pessoal: Ao contrário de um resumo, onde colocamos a idéia do autor de modo sucinto e imparcial, um comentário nos dá a liberdade de expressarmos nossas opiniões e tudo aquilo que o livro nos fez pensar, por mais disparatado que seja – e a psicanálise que me defenda.

Por exemplo, quando alguém sai do cinema e comenta o filme com a pessoa ao lado, está não apenas dizendo sobre o que ocorreu na história, mas impregnando as ações dos personagens e a narrativa com suas próprias vivências e especulações, muitas vezes apontando falhas ou dando um final diferente para a história. Assim, se tivéssemos a ousadia de tentar juntar todas as opiniões e idéias que emergem de um livro, por mais banal que seja, perceberíamos logo que as possibilidades são quase infinitas, e nisso reside a beleza da literatura.

Humildemente, devo dizer que tive o privilégio de nascer com o dom da prolixidade, então, para que meus textos não se tornem ninhos de marfagarfos impenetráveis, tenho que comumente recorrer a alguns estratagemas. Nesse comentário, decidi dividir tudo em tópicos. Se a qualidade do texto é lá discutível, pelo menos temos a vantagem de uma leitura com mais clareza. Primeiro, dividirei meu comentário em duas partes básicas: Na primeira delas farei uma discussão mais objetiva, salientando os pontos mais importantes que achei. Depois, tentarei discutir outras idéias que me foram evocadas enquanto eu prosseguia na leitura, mas já pendendo mais para o lado da filosofia. Essa divisão tem dois motivos: Primeiro, comunicar ao meu professor que eu realmente levei a leitura a sério e, segundo, é uma tentativa de não fazer meu comentário parecer pedante ou, pior ainda, árido e inútil.

Então, começo dizendo que adorei o livro. E digo isso com a propriedade de quem se viu duplamente resistente em iniciar a leitura. Por um lado já havia tentado ler dois outros livros do autor sem sucesso, por outro estava desde o terceiro período ouvindo colegas de faculdade me dizerem que Gould iria destruir minhas convicções evolucionistas.

O maior de todos os cientistas, Charles Darwin. (Obrigado Thalita por ter scaneado pra mim e obrigado a Sue por ter enviado esse postal direto do Museu Nacional de Londes).

De modo que comecei com um frio na barriga, defensivamente, esperando a cada parágrafo encontrar sentenças que batessem de frente com tudo o que eu acreditava. (Certamente essa atitude de pré-concepção foi a responsável pela segunda parte do meu comentário, mas não consigo saber se ela me deixou mais atento a pequenas contradições ou mais cego às explanações de Gould).

De qualquer forma, a leitura prosseguia e eu não achava nada fora de propósito ou estranho ao que eu tinha aprendido.

Não foi de uma hora para a outra, mas percebi que eu tive o privilégio de crescer durante a década de 90, onde as descobertas de Whittington estavam bem assentadas e (talvez surpreendentemente) tiveram a chance de chegar até a mim.

Naturalmente não tomei conhecimento delas através dos livros escolares do ginásio, nem de modo tão coeso e didático. Fui uma criança, como a maioria, que passou boa parte do tempo com os olhos grudados na televisão. Mas além de desenhos animados e filmes, eu não apenas assistia como gravava muitos documentários da TV Escola. E eram bons documentários. Naquela época, nunca tinha ouvido falar em Burgess Shale, Whittington, Morris ou mesmo Gould, mas garanto que as idéias deles estavam lá, nas entrelinhas. Lembro-me perfeitamente de um documentário chamado O Elo Cósmico (que inclusive dá nome a uma de minhas postagens) onde ouvi pela primeira vez um paleontólogo falar que não é possível dizer que o cérebro de um ser humano é melhor que o cérebro de um lagarto, por exemplo.

Todas essas idéias envolvendo a evolução das espécies, tempos geológicos diante dos quais parecemos formigas, grandes ou pequenos fatores casuais sem os quais não estaríamos aqui, tudo isso fermentando no cérebro instável e meio derretido pela puberdade de um adolescente impressionável me estarreceu como poucas coisas na vida. Gould me levou de volta a uma época de descobertas, de questionamentos, de desamparo, de revolta contra as instituições, mesmo que tudo isso apenas no plano intelectual. Uma época em que queremos saber de tudo, e instantaneamente.

Não sei se por ter lido em algum lugar, se intuitivamente, mas já naquela época percebi que a metáfora de uma árvore para representar a evolução não condizia bem com a verdade. A partir de então passei a imaginá-la como um líquen sobre uma rocha, irradiando-se em todas as direções; mas com nenhuma parte “acima” ou “abaixo” de outra. Porém, lendo Vida Maravilhosa percebi que essa nova imagem também não é de todo certa, pois continua passando a idéia de diversidade crescente. Penso agora que um líquen desgastado, com rombos e rasgos deve servir melhor.

Gostei muito, no capítulo 1, quando Gould fala longamente sobre a velha iconografia mostrando a evolução do Homo Sapiens – um primata minúsculo e corcunda que vai ficando progressivamente mais ereto, até chegar, de preferência, no David de Michelangelo.

Eu já tinha lido em alguma revista que grande parte dos hominídeos ali representados nem de longe eram ancestrais de nossa espécie. Mas coincidentemente foi um outro livro de Gould, A Falsa Medida do Homem,  que assentou em mim a falácia de tal representação, além de me dar uma base muito boa para compreender os detalhes das teorias evolucionistas racistas do início do século XX.

Vida Maravilhosa serviu para consolidar minhas idéias, me dar muito conhecimento sobre o sítio paleontológico mais importante do mundo e soerguer várias outras questões (mais ou menos filosóficas) que abordo agora, com muita humildade, na segunda parte do meu comentário.

1 – As Contradições (?) de Gould:

Gould.

Considero o capítulo 4 o mais interessante de todos, pois é onde Gould alerta para o subjetivismo e as idéias pré-concebidas na ciência, um assunto que sempre me interessou. Porém, em alguns parágrafos, achei que ele próprio foi contraditório ou tendencioso.

Por exemplo, na página 297 chegamos a um subcapítulo interessante, onde Gould evoca um Walcott seguidor de Darwin. Primeiramente ele nos diz que tal condição de discípulo

“implicaria uma firme crença na importância da peculiaridade e do oportunismo nos caminhos evolutivos e uma profunda concepção de que a história da vida trata de adaptação a ambientes locais variáveis e não de progresso em termos gerais. (p. 297)”

Ninguém poderia ter explicitado de forma melhor.

Mas logo depois Gould afirma que Darwin foi “um homem complexo”, atormentado por uma dúvida capital em sua teoria. Ao mesmo tempo em que não queria julgar nenhuma espécie superior à outra, vivia no contexto de um clima político inverso, o auge da Inglaterra imperialista, o que o levou a escrever algumas vezes que

“os organismos que viveram em cada uma de suas sucessivas fases da história do planeta superaram seus predecessores na corrida pela vida e, neste sentido, ocupam uma posição mais elevada na escala da natureza. (p. 298)”

Desde então, nos diz Gould, as flutuações na sociedade nos fazem pender para o lado do pensamento darwiniano que mais se adéqua a nossos interesses e ideologias.

Em minha opinião Gould hipertrofiou o dilema de Darwin, pois acho bastante arriscado dizer que o velho cientista se dividiu “meio-a-meio”.

A despeito de cartas pessoais que tenha mandando ou mesmo comentários anotados por terceiros, creio que a imensa bibliografia deixada por Darwin mostra claramente que ele estava mais pendido para a idéia de não-progresso. Enquanto trabalhava no rascunho de A Origem das Espécies, ele chegou a rabiscar na orelha do manuscrito: “Nunca dizer que uma espécie é melhor que outra.”

Já na página 298, temos um 3º parágrafo bem grande, mas muito importante, onde Gould nos diz o seguinte:

“Darwin tem sido o principal guru científico há mais de cem anos e, como as duas visões são genuinamente parte de seu pensamento, sucessivas gerações tem propendido a abraçar o lado que mais se coaduna com as verdades ou reformas que desejam apoiar. Em nossa época, tão próximos do “progresso” de Hiroshima e atormentada pelos perigos da industrialização e do armamentismo, tendemos a encarar como ficção social a nítida adesão de Darwin à idéia de que as modificaões representam ao mesmo tempo progresso e adaptação ao ambiente local. Na geração de Walcott, porém, e em especial para um homem notavelmente bem sucedido e com fortes inclinações tradicionalistas, a adesão de Darwin à noção de que o progresso era uma qualidade inerente ao curso normal da história da vida transformou-se no elemento central de um credo evolucionista. Walcott considerava-se darwinista, expressando através desse posicionamento sua firme convicção de que a seleção natural assegurava a sobrevivência dos organismos e um progressivo aperfeiçoamento das formas de vida, numa possível trajetória rumo ao surgimento da consciência”.

Gostaria que o leitor prestasse bastante atenção à contradição que esse parágrafo encerra: Primeiro, Gould diz que Darwin foi influenciado pelo seu meio social a acreditar que a evolução levava ao progresso.

Mas depois, curiosamente, não responsabilizou essa mesma influência para com Walcott, dizendo que para ele a culpa foi um dilema altamente específico de um grande cientista, já morto e enterrado fazia tempo. Será que Walcott acreditou mesmo na idéia de progresso por ter tomado conhecimento de cartas que Darwin enviou a amigos durante a vida? Ou ele terá sido influenciado por um meio ainda mais agressivo daquele vivido por Darwin?

Porque o cientista inglês viveu na Inglaterra imperialista, sim, mas dizer apenas isso é se contentar com meia verdade. Havia algo de podre no reino de sua majestade, a rainha Vitória, e já cheirava mal há algum tempo. No ano de 1939, o país parecia caminhar em direção a anarquia. Evolucionistas malthusianos que viam a vida caminhando para a melhoria das raças denunciavam a decrepitude mantida por um estado anacrônico: asilo para pobres (que se multiplicavam como ratos, manchando a raça humana), privilégios clericais e exploração dos salariados. O socialismo queria derrubar o casamento, a igreja oficial e o capitalismo. A matéria era tudo o que existia, misticismo e religião deviam ser varridos da mente humana. As classes mais abastadas encolhem-se, temendo a desagregação de todos os privilégios.

No século XIX, a inglaterra era percorrida por um frisson de instabilidades.

Pelo menos para os mais esclarecidos, esse foi um período turbulento tanto intelectual, como politicamente. A Inglaterra imperialista parecia forte vista de fora, mas quem andava pelas ruas percebia o tremor que lhe percorria as entranhas.

Darwin não queria sua teoria usada para o tipo de propaganda rebelde que os ateus evolucionistas bravejavam nas sarjetas da Europa, mas acabou que aconteceu isso mesmo, ainda que ele tenha esperando 20 anos para ver se o clima amainava um pouco.

Na verdade o burburinho ganhou força até a época de Walcott, culminando no clímax enlouquecer da teoria ariana nazista.

Achei muito estranho Gould não ter falado sobre um dos fenômenos mais importantes para a biologia histórica ocorridos na história moderna: o darwinismo social.

Infelizmente, é possível sim relacionar essas duas personalidades.

Enquanto Hitler mal havia saído das fraudas, biólogos racistas já perambulavam pelos grandes centros europeus ou viajam longamente até as colônias africanas, percorrendo campos de concentrações que quase ninguém ouviu falar. As atrocidades da Ilha Shark foram esquecidas, mas todos se horrorizam com Auschwitz, sem ao menos suspeitar que as conseqüências nazistas foram preparadas com décadas de antecedência, em que os Estados Unidos da América foram os principais financiadores disso tudo.

Gould prefere salientar o episódio que se contrapunha a isso, e muito superficialmente nos lembra que o conservadorismo e o puritanismo dos norte-americanos criaram uma verdadeira guerra anti-evolução, algo que podemos observar mesmo agora, em tempos recentes.

Continuando, temos uma discretíssima nota de rodapé, na página 354, onde Gould admite algo interessante.

Acredito que ele era um homem não apenas brilhante mas muito honesto, e uma força inconsciente o fazia lembrar o leitor que as suas próprias idéias eram possíveis em um plano teórico. Vejam só:

“Não é possível saber se as formas que fracassaram desapareceram em episódios de extinção em massa ou aos poucos. A primeira situação seria um forte indício em favor da existência de um substancial componente de casualidade da dizimação. Embora não tenhamos a resposta para essa questão, em princípio a solução pode ser obtida.”

Vou repetir: “Embora não tenhamos a resposta para essa questão, em princípio a solução pode ser obtida.” “Em princípio.”

Achei que ele também não explorou um assunto muito interessante e perfeitamente cabível no assunto do livro, que diz respeito a diversidade de vida na Terra. Apesar de nenhum filo ter se originado desde o Cambriano, é interessante que hoje exista um número muito maior de espécies do que em qualquer outra época, ou seja, levando-se em conta o número de espécies, o cone de diversidade crescente se encaixa perfeitamente bem. Ao que parece Gould se contentou com a explicação de que o registro fóssil é impreciso, apesar de ter alfinetado Darwin e Walcott quando ambos recorreram a esse argumento falho.

Por fim, quase no fim do livro Gould escreve um confuso e estranho parágrafo:

“Eu mesmo não acredito que o verdadeiro acaso predomine nas extinções em massa. (…) penso que a maioria dos sobreviventes escapa da morte por razões específicas, muitas vezes por um complexo conjunto de causas, mas também desconfio que, na grande maioria dos casos, os traços que aumentam a sobrevivência durante uma extinção o fazem de maneiras que são incidentais e que não guardam qualquer relação com as razões pelas quais ele originalmente evoluíram. (p. 359)”

Com todo o respeito, mas não parece uma atitude de quem quer ficar em cima do muro? Diante desse parágrafo, compreendo porque alguns evolucionistas consideram as idéias de Gould como uma retificação importante, mas versam sobre algo que já era conhecido e defendido como certo pelos cientistas até ao momento.

Além do mais, Gould mesmo afirma que Darwin percebeu o efeito do acaso nos detalhes, enquanto as leis evolutivas só traçariam um plano a nível básico de estruturas. Darwin disse que “os detalhes estão situados na esfera da contingência, a qual não é direcionada pelas leis que estabelecem os canais ao longo dos quais se processa a evolução.”

Resumindo tudo, a evolução linear de Darwin funciona em tempos de calma, como um paciente construtor de castelos de cartas. Porém, inevitavelmente ocorrem fenômenos da natureza imprevisíveis e inescapáveis que jogam tudo abaixo e mudam as regras do jogo momentaneamente.

2 – As Razões de Gould e a Natureza da Ciência

O principal impedimento ao avanço da ciência é a influência subjetiva que os estudiosos lhe aplicam.

“Nós temos consciência de que nossas predisposições, valores sociais e atitudes psicologias desempenham importante papel na descoberta. Todavia, não devemos nos deixar levar pelo extremo oposto, representado pelo completo cinismo – o ponto de vista de que os indícios objetivos não desempenham nenhum papel, de que as percepções da verdade são inteiramente relativas e de que as conclusões científicas são apenas uma outra modalidade de preferência estética. (p. 281)”

Assim nos diz Gould no início do capítulo 4. E concordo com ele em parte. Mas dentro da ciência, arrisco dizer que talvez apenas a matemática possa gozar do privilégio de estar mais próxima da Verdade, enquanto todas as outras áreas são tão subjetivas quanto qualquer tipo de olhar sobre o universo. Para quem concorda comigo temos do nosso lado ninguém menos que Albert Einstein, quando ele nos diz que

“a ciência, considerada como um projeto que se realiza progressivamente, é tão subjetiva e está tão condicionada psicologicamente quanto qualquer outra empresa humana.”

Hoje existe até uma Ciência da Ciência, ou melhor, uma Sociologia da Ciência, que busca exatamente perceber como as flutuações sociais condicionam os caminhos que os estudiosos e especialistas trilham através da história. Temos até várias interpretações interessantes como a de que, por exemplo, para entender a ciência moderna é necessário ver que ela faz parte do capitalismo, e tem por objetivo garantir seu crescimento e sua continuidade.

É uma maneira revolucionária de ver as coisas.

Por exemplo, há quem veja na oposição entre a Igreja Católica e Galileu como uma manifestação do conflito entre o feudalismo medieval e o capitalismo nascente; atribuir ao sistema de Newton a função de justificar a nova ordem burguesa, etc.

Galileu tenta persuadir um clérico da Igreja: Personificações do embate entre dois mundos.

O início do século XX, marcado por escolas teóricas reducionistas como o positivismo, foi também época de revolução desses preceitos. Aliás, podemos dizer que o positivismo foi apenas o fechamento de toda uma cultura centrada no cientificismo do século XIX.

As primeiras décadas do século passado foram, sobretudo, marcadas pelo ferro quente da dúvida existencial. Foi o tempo da relatividade de Einstein, de Heisenberg e suas incertezas, da bomba H.

Quem tá com Einstein levanta a mão! Apesar da sandalinha...

Gould viveu numa época de decantação dessas idéias, e principalmente durante o surgimento de uma teoria que tinha pretensões de explicar todos os fenômenos do universo: o Caos.

Filha da física quântica, ela contrapôs toda a ciência newtoniana e a arredou para um lado, ocupando um lugar que, se tão importante quanto, tinha o privilégio de atrair mais atenção pelo simples fato de ser novidade. E deveríamos acreditar na sociologia da ciência quando ela nos diz que são os fenômenos sociais que criam os cientistas, porque a Teoria do Caos parecia explicar o estranho mundo do século XX de forma muito mais satisfatória.

Fractais estão sendo usados para explicar a teoria do caos.

Podemos enxergar outras formas de ruptura em outros setores sociais? É evidente que sim. Temos nesse mesmo palco a batalha entre Jung e Freud; o socialismo emergente na outra ponta do mundo com a Revolução Russa de 1917; o alastramento tortuoso mas inexorável da democracia na Europa.

Tanta bipolaridade nos deu de brinde duas guerras mundiais e a conseqüente condensação do pensamento de que o mundo não segue nenhum caminho previsível, nenhuma “marcha para o progresso”.

No ramo das ciências biológicas, podemos distinguir o fim da idéia de que a natureza é uma fonte inesgotável de riqueza e energia. Vida Maravilhosa foi escrito logo após o movimento hippie das décadas de 60 e 70, onde as gerações mais jovens olhavam com temor crescente uma natureza que cada vez mais se tornava uma entidade frágil, à beira do “colapso atômico.”

O movimento hippie foi o prelúdio leve de uma histeria que tomou conta dos nossos dias.

É irresistível extrapolarmos a época de Gould e analisar nossos próprios dias, onde aquela preocupação meio zen proclamada ao som de Beatles foi rapidamente transformada no terror dantesco de uma onda ecológica sem precedentes.

Eu gosto muito de estudar história, principalmente os grandes fenômenos coletivos. Percebo que a nova histeria derramada sobre o ocidente parece-se muito com aquela da caça-as-bruxas, com a diferença de que não temos mais o Diabo como epicentro patológico. Hoje o vilão é hollywoodianamente muito superior, tanto em audiência quanto financeiramente. Para quem não sabe ainda de quem estou falando basta ligar a TV: Lá está ele, o insuperável, o medonho, o impiedoso Aquecimento Global.

Olhando assim, poderíamos quase dizer que era previsível.

Num mundo onde torres desabam, metrôs explodem e nem nosso xodó ocidental, o neoliberalismo, consegue escapar aos caos reinante, não poderíamos esperar algo menos portentoso. Se John Lennon e Carl Marx previam o fim do modo burguês ocidental, nós, cidadãos do século XXI, não mais nos conformamos com tal mesquinhez. Hoje é preciso que cada espécie da Terra, desde o menor micróbio até a mais pesada baleia azul esteja não só potencialmente ameaçados, mas irreversivelmente ligados a um destino apocalíptico.

Nesse ponto meu texto deve estar parecendo confuso e fora de rumo. Falar de ciência já é difícil e prepotente de minha parte, falar da sociologia da ciência e querer um texto cristalino pode ser um desejo risível.

Mas depois de tudo isso, é possível acreditar numa ciência mais verdadeira, que esteja satisfatoriamente independente dessas forças sociais? Não seria ela apenas mais uma forma de “preferência estética”?

3 – Sobre o Acaso: Implicações Existenciais e Especulações Teórico-Científicas.

Interessante que o tema mais central do livro foi também o menos discutido de todos, certamente porque Vida Maravilhosa tem um enfoque biológico, e não filosófico. Mesmo assim Stephen Gould, como bom escritor que é, provoca no leitor todas as questões existenciais advindas com a idéia de que nossas vidas se devam a uma seqüência quase infinita de pequenos acasos ocorrida em bilhões de anos de evolução sobre este planeta. É a metáfora incansavelmente repetida do replay: Mude alguma coisa aparentemente insignificante num momento passado e você terá uma história da vida na Terra totalmente diferente, talvez quem sabe com seres de aparência reptiliana usando cartolas e indo ao teatro.

Para nos cativar, Gould utiliza recursos altamente simpáticos como, por exemplo, o filme De Volta Para o Futuro, assistido por quem foi jovem nos anos oitenta ou, como eu, cresceu com os olhos vidrados em Sessão da Tarde enquanto se empanturrava com tigeladas de Sucrilhos Kelloggs.

Filmes bacanas para convencer o leitor.

Se Vida Maravilhosa tivesse sido escrito mais recentemente, talvez ele tivesse citado o moderninho Efeito Borboleta ou, quem sabe, Alta Frequência, o qual assisto agora enquanto trabalho nesse texto. Em um sentido um pouco mais estrito temos o onírico Vanilla Sky ou mesmo Mach Point, onde pequenos detalhes mudam drasticamente o destino de seus personagens.

Só achei que, se em vários parágrafos Gould quis despertar em nós questões metafísicas a respeito de nossa existência nesse planeta não apenas como espécie, mas como indivíduos, tal discussão poderia ter tomado um caminho mais largo, apontando diversas possibilidades filosóficas. Mas entendo que tal abertura iria desviar o caminho de um livro que toma um assunto por si extenso, além de poder incutir no leitor idéias que o deixariam reticente por todas as outras centenas de páginas onde Gould expões suas idéias. Querem ver?

À maneira de Gould, poderia citar também alguns filmes, ainda que no final queira chegar à conclusão contrária.  Linha do Tempo retrata a força do destino quando um grupo de arqueólogos volta à Idade Média e, em sua inocência, teme causar reviravoltas na história da humanidade, sem saberem que tal coisa é impossível. Para a criançada, adolescentes e simpatizantes temos Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, onde todas as conseqüências de uma viagem ao passado já estavam presentes antes mesmo do primeiro replay.

Mas o meu preferido mesmo é A Máquina do Tempo, que apesar de anos-luz em qualidade do livro homônimo, escrito pelo mestre da ficção-científica H. G. Wells, traz algum divertimento e serve muito bem para ilustrar o ponto de vista inverso (além de decorar uma parede do meu quarto com um pôster amarronzado estilo século XIX).

O filme é interessante, vale a pena.

Gould usou alguns filmes mais ou menos conhecidos para ilustrar uma opinião que não parece sofrer qualquer tipo de dúvida: o caráter altamente importante do Acaso na vida de todos nós. Felizmente pudemos ver quais os motivos do próprio Gould em abraçar esse elemento tão especulativo de maneira tão tranqüila.

Como Gould, também partilho da percepção de que os cientistas das ciências exatas gozam de um status mais elevado no meio acadêmico, enquanto os estudiosos das ciências biológicas e, mais especificamente, os paleontólogos cheguem a ser comparados a meros “colecionadores de selos.”

Entretanto, por ironia, devo recorrer aos físicos agora.

Começo dizendo que viagens no tempo são possíveis, Einstein descobriu isso há quase um século quando escreveu sobre o que seria conhecido mais tarde como o “paradoxo dos gêmeos”.

O tempo passa diferente dependendo da velocidade do sujeito experimental. Coloque alguém dentro de um foguete, faça esse foguete disparar a uma velocidade altíssima, de preferência próxima a da luz, e quando a pessoa retornar para a Terra observa-se o estranho fato: Enquanto para o viajante do foguete passaram-se poucas horas aqui na Terra passaram-se anos e décadas, e isso qualquer reprise de Planeta dos Macacos ensina.

Os físicos de hoje calculam que 24 horas dentro de um foguete viajando a 99% da velocidade da luz equivalem a 1000 anos terrestres. Obviamente, a descoberta de Einstein foi uma revolução. A física quântica relegou o tempo newtoniano a uma mera característica variável; no estranho universo recém-descoberto tudo acontece ao mesmo tempo.

Tomemos na imaginação que um desses foguetes exista hoje, e que nosso Viajante do Tempo faça um tour pelo universo até que aqui, na tranqüila Terra, tenha se passado 1000 anos. (A despeito do que alguns ambientalistas do Greenpeace possam dizer, tenho certeza de que ainda estaremos aqui como espécie, e não vai ser nenhum aquecimentozinho global prepotente que vai nos refrear, mas isso também é outra história.) O importante é que quando se passarem 24 horas no relógio do viajante, ele poderá descer e encontrar a Terra lá pelo ano 3000.

Observação importante: A teoria de Einstein foi recentemente provada usando-se cronômetros de altíssima precisão e aviões supersônicos. Fácil perceber que o futuro existe, só não temos como chegar lá ainda.

Aí vem a pergunta que não quer calar: Será que o nosso viajante conseguiria voltar no tempo e mudar alguma coisa hoje para que uma desgraça futura não aconteça como em De Volta Para o Futuro? Ou ele pode lutar o quanto quiser para mudar a história que não fará nada além de trocar pequenos detalhes que no fim darão o mesmo resultado à maneira de A Máquina do Tempo? Nossa própria idéia de tempo linear fica abalada com essas novas teorias quânticas.

Nesse último filme, nosso professor viaja para muito longe no futuro, em busca de uma resposta, e a encontra proferida pelos lábios pálidos do Morlok-mor: “Você só inventou a máquina do tempo porque perdeu sua noiva. Se ela não tivesse morrido sua máquina nunca existiria. Então como poderia voltar no passado para salvá-la?”

Do mesmo modo, os físicos argumentam que eu não poderia voltar ao passado e impedir que meus pais se encontrassem porque desse modo eu não nasceria e, naturalmente, não poderia voltar no tempo para influenciar nada.

Num universo imutável, onde tudo segue uma regra preestabelecida, esbarramos, claro, na idéia de um “fazedor de regras”, alguma entidade que tenha organizado o universo de acordo com seus preceitos. Deus.

4 – A Teoria do Caos e o Desespero Niilista: Porque Deus Não Está Morto.

Sei o quanto é impróprio citar Deus num ensaio científico, ainda que esse comentário seja mesmo altamente pessoal. Queria apenas mostrar o quanto é precário apoiar-se numa idéia altamente filosófica quanto o Acaso para discorrer sobre um assunto científico. Percebem o que acabei de fazer nessas poucas linhas? Usando alguns filmes e duas teorias científicas criei embasamento para uma ideologia criacionista. O leitor mais atento poderia redargüir com razão que falei sobre leis físicas, enquanto Gould discorreu sobre leis biológicas, mas no fundo isso não faz diferença. Os céticos usarão as leis biológicas como evidência para a inexistência de Deus, os crentes encontram na física quântica exatamente o argumento contrário.

Como já falei aqui, quando eu estava no início da adolescência e comecei a estudar evolução, tive pensamentos perturbadores e fiquei um tempo sem acreditar em Deus. Depois, tentei seguir o conselho de Pauster, que dizia que ao “abrir a porta do oratório fechava a do laboratório, e vice-versa.” Porém essa filosofia nunca me causou muito conforto.

Bem, hoje eu não sou criacionista no sentido fanático do termo, mas tenho sim minhas crenças de que a humanidade e todos os seus indivíduos estão aqui por algum motivo. Também não sou kardecista, mas não acredito nesse Acaso total que Gould tenta me convencer. Pra ser sincero acho até meio divertido, lembrou-me o cínico e carismático matemático de Jurassic Park, Ian Malcon: “Uma borboleta bate as asas em Pequim e no Central Park chove ao invés de fazer sol”.

Creio que o caos sempre é aplicado como causa de algum fenômeno quando a mente humana não está apta a enxergar qualquer tipo de harmonia.

Algumas pessoas renegam a idéia de Deus depois de observar as sequências geológicas, os grandes hecatombes planetários e extinções de genealogias inteiras. Ainda que Gould não expresse o niilismo prepotente de Richard Dawkins, percebo que ele tenta o tempo todo nos persuadir de que não houve qualquer tipo de plano na evolução, e de que a humanidade é um mero produto de um número quase infinito de pequenos acasos.

Muitas pessoas, inclusive os puritanos fanáticos citados por Gould não conseguem encontrar um meio termo que os faça ficarem confortáveis com suas crenças e por isso preferem não acreditar na evolução. Travam verdadeiras batalhas e não conseguem ouvir os argumentos dos cientistas, talvez por medo de perderem sua fé.

Sinceramente, não vejo motivo para tal pânico. Poderia trazer para cá a opinião de uma personagem criada por Frank Schätzing no excelente romance de ficção científica O Cardume. Ali temos uma astrônoma em busca de vida extraterrestre chamada Samantha Crowe. Segundo ela

“a partir de um certo subnível ou metanível, o ser humano não é mais capaz de reconhecer inteligência como tal. Apenas compreende como inteligência o que estiver no âmbito de suas próprias atitudes. Alem desses limites, como no microcosmo, por exemplo, simplesmente não a perceberia. Da mesma forma, numa inteligência mais desenvolvida, numa mente muito superior, apenas veria o caos, porque não conseguiria acompanhar seu raciocínio complexo. Decisões tomadas por uma tal inteligência  permaneceriam incompreensíveis para ele, uma vez que seus parâmetros vão alem da sua capacidade de assimilação intelectual. Um cachorro também vê no homem apenas o poder ao qual ele se subordina, não a mente. O comportamento humano parece-lhe não ter sentido, porque as nossas atitudes baseiam-se em pensamentos que exigem demais de sua percepção. Por outro lado, nós não conseguiríamos perceber Deus, caso ele exista, como inteligência, porque seu pensamento provavelmente se basearia numa totalidade de idéias cuja complexidade vai muito alem de nossa capacidade. Consequentemente, Deus é caótico para nós e, portanto, dificilmente faria nosso time de futebol ganhar ou impedir guerras. Um ser desses estaria além do último limite da capacidade humana de compreender.(…). ( p. 819.)”

Desse modo, até o criacionista mais light poderia encostar a cabeça no travesseiro e dormir tranqüilo, mesmo após 380 páginas de cientificismo cético.

Talvez eu seja criticado no futuro por colegas de profissão, mas vejo certa beleza poética nessa vontade incontrolável que o homem tem de se sentir o produto final da evolução. Depois de tudo o que falei sobre as teorias racistas, sei perfeitamente o quanto dizer isso pode ser arriscado, mas estou convicto de que todos os holocaustos biológicos foram erros de uma espécie ainda em sua adolescência evolutiva. Porque, afinal, essa sensação de desamparo não foi provocada por nenhuma religião instituída ou governo totalitário, ela provém do profundo sentimento de solidão que o homem sente no cosmos. Os instintos e nosso corpo animal ainda nos ligam ao mundo natural de forma muito forte, mas essa mesma natureza nos afastou quando trabalhou em nós a coisa mais sofisticada do universo conhecido: a Consciência.

dono de uma carapaça bivalve cobria não apenas a cabeça desse animal mas dois terços do corpo. Este apresenta 46 segmentos, afinalando na parte posterior e terminando num telso bifurcado.

7 Comentários

  1. É muito interessante imaginar como tudo começou, e os fósseis estão aí para provar que existia vida a milhões de anos. De repente me vem uma dúvida… Por que “Deus” demorou tanto para criar o homem? E a resposta é, que o homem veio para destruir tudo o que Ele criou.
    O fato é que, onde há deserto hoje, antes havia mar, as montanhas geladas canadenses eram cobertas por água. É impressionante pensar em tudo isto, que cada criatura teve o seu tempo aqui na terra e o homem também, está tendo o tempo dele.

  2. eu gostei muito dos textos

  3. Seguinte, acabei de descobrir seu blog. Adorei. Voltarei.
    Realmente vou dar minha opinião…
    abço!

    • Oi Paula, obrigado pelo comentário. O blog anda meio largado porque estou sem internet, mas em breve pretendo colocar novas postagens, apareça!

  4. […] Burgess de sua graça, canadiana de nacionalidade e depositária de importante espólio fóssil do período câmbrico, que marca a explosão de diversas formas de vida. Integra-se na espectacular paisagem das Rocky Mountains e protagoniza agora um site maravilhoso aqui. Vale a pena passar por lá e embarcar no submarino virtual que nos leva ao fundo do mar há muito desaparecido e onde tantas destas formas de vida habitavam. Ou passear pela galeria de fósseis aí descobertos e que abriram novas perspectivas sobre a evolução das espécies: Graças a eles sabemos hoje que a vida evolui através de extinções massivas seguidas de diferenci…. […]

  5. Olá Ricardo,

    Lendo o livro “Praticar a Epistemologia”, interessei em saber um pouco sobre os “fósseis de burgess”.

    Na pesquisa, deparei com o seu texto. Muito interessante, argumentativo, de conteúdo. Gostei do texto, pela forma clara da exposição. Aguardo os romances “não publicados” ainda…

    Abraços e felicidades na sua trajetória.

    Aparecida Soares.

    • Ola Aparecida,

      fico muito agradecido pelo seu comentário, principalmente porque procuro sempre a melhor maneira de apresentar um assunto. Esse post em particular, por ser de um assunto muito específico, não tem muita audiência, mas nem por isso deixa de ter relevância, principalmente para aqueles que estudam evolução.
      Flores, Livros e Lua anda parado há muito tempo, e parece que agora vou mudar de endereço, acabei de fazer uma conta na rede teckler e já estou finalizando o primeiro post para lá. Quanto aos romances não publicados, estou tentando terminar pelo menos um, mas meu perfeccionismo atrasa bastante o processo, rsrs. Um abraço.


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